“A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.”
Manoel de Barros
Poeta brasileiro do século XX
O poeta Manoel de Barros nos convida a transformar as derrotas em forças, a não dar formatos aos nossos pensamentos para que possamos ver, rever e, na imaginação, ‘transver’.
Daí, surge uma indagação: o que é avaliar no cotidiano do ato educativo?
Será que essa pode ser uma forma de ‘transver’ a nossa maneira de planejar, de definir os conteúdos, os objetivos a serem alcançados e assim, replanejar, rever os objetivos, em um movimento circular e contínuo nas práticas pedagógicas?
Como você tem percebido esse processo na sua atuação docente? Que conceito ou conceitos você tem sobre avaliação?
A seguir, abordaremos pontos importantes sobre esses temas.
Proximidade conceitual
A palavra avaliar é proveniente do latim, valere, resultando em ‘valia’, na Língua Portuguesa, da qual se formou ‘avaliar’, termo polissêmico que traduz diferentes dimensões do ponto de vista dos conhecimentos e das experiências humanas. Assim, o ato de avaliar pode ser compreendido como um ato cotidiano, pois, mesmo que não percebamos, estamos em constante estado de atenção, observando e avaliando as situações que nos permeiam.
Nesse sentido, o ato de avaliar integra as ações humanas. Um olhar pela vidraça da janela ao amanhecer nos possibilita avaliar se há sol ou se há chuva, bem como a sabedoria ancestral que permitia adivinhar os dias de sol ou de chuva com um simples pousar de olhares sobre a lua, compreendendo-a em suas fases. Assim, o ato de avaliar toma um contorno estético, poético, quase profético, porque nos permite ver e ‘transver’ o mundo, conforme nos diz o poeta Manoel de Barros.
Esse movimento é uma atitude tão corriqueira que não nos damos conta do quanto é importante, pois envolve uma série de conhecimentos e experiências sobre o ambiente no qual vivemos.
No ambiente escolar, contudo, esse ato aparentemente corriqueiro é envolvido por outras dimensões. Assim como em outros contextos, na escola, o ato de avaliar implica conhecimentos e experiências. No entanto, o que muda nesse processo? Podemos inferir que o que muda é a intencionalidade e os parâmetros que definem como esse processo se dará no cotidiano da escola, da sala de aula e da prática pedagógica.
Destaque
É preciso repensar o processo avaliativo para que esse se dê de modo disruptivo e inclusivo, ou seja, que provoque rupturas com padrões ou modelos historicamente naturalizados no que se refere a forma de fazer avaliação no ambiente educativo, focados prioritariamente no resultado, tendo como base a avaliação classificatória, meritocrática e, portanto, fragmentada e excludente.
Hoffman (1994) alerta que o cotidiano da escola desmente um discurso inovador de considerar a criança e o jovem a partir de suas reais potencialidades, pois, de forma mecânica e rotineira, a avaliação assume a função comparativa e classificatória, negando as relações dinâmicas necessárias à construção do conhecimento e solidificando lacunas de aprendizagem.
A educação, por sua vez, é tão dinâmica quanto a sociedade, aliás, ambas se fundem num processo de retroalimentação e coexistência e, nesse sentido, o locus privilegiado da educação, a escola, deve acompanhar as transformações em todos os campos das sociedades, sobretudo em vista dos avanços científicos e tecnológicos. A educação, por sua vez, é tão dinâmica quanto a sociedade; aliás, ambas se fundem num processo de retroalimentação e coexistência e, nesse sentido, o locus privilegiado da educação, a escola, deve acompanhar.
Dessa forma, o ato de avaliar precisa ter como sustentação novos parâmetros que se contraponham à visão de dominação e exclusão. Esses parâmetros precisam estar em conformidade com a ideia de sujeito protagonista de sua aprendizagem e em contraposição à concepção classificatória e excludente, numa perspectiva dialógica, integral e emancipadora.
Para contribuir com essa discussão, apresentaremos a seguir algumas ideias de Luckesi (2011), Hoffmann (2014; 2015) e Romão (1998). Essas ideias podem contribuir para um melhor entendimento acerca da avaliação escolar e suas diferentes perspectivas como uma das dimensões fundamentais no processo de ensino e de aprendizagem.
Avaliação na perspectiva de Luckesi
Para Luckesi (2011), a avaliação da aprendizagem configura-se como um ato de investigar a qualidade da aprendizagem dos educandos, a fim de diagnosticar impasses e, se necessário, propor soluções que viabilizem os resultados satisfatórios desejados. Avaliar, assim, significa investigar e, com base nos conhecimentos produzidos por essa investigação, tomar decisões de intervenção quando necessário.
Luckesi (2001, p. 69) entende a avaliação como “um juízo de qualidade” sobre “dados relevantes”, tendo em vista uma “tomada de decisão”. Essa definição apresenta, segundo o autor, três variáveis significativas que podem nortear a ação avaliativa.
- O juízo de qualidade compreende afirmações ou negações (juízos) sobre aspectos adjetivos do objeto avaliado, ou seja, dos conhecimentos específicos de cada Unidade Curricular. Nesse sentido, a produção de um juízo de qualidade dá-se por meio de um processo comparativo entre o objeto de estudo e um determinado padrão ideal de julgamento.
- Os dados relevantes da realidade a serem levados em consideração na avaliação deverão ser compatíveis com o objeto a ser avaliado e com os objetivos de aprendizagem que se pretendem alcançar.
- A tomada de decisão nos ajuda a entender que a avaliação não se esgota na emissão do juízo de qualidade; esse serve para fundamentar uma decisão que pode ser de continuar na situação em que se está, de modificá-la ou de suprimir a situação ou objeto avaliado.
Essas variáveis apresentadas por Luckesi (2001) nos ajudam a refletir que a avaliação deve ter como referência todo o processo de ensino e de aprendizagem, e não dar ênfase somente ao resultado, prática muito comum na Educação Básica.
Avaliação na perspectiva de Hoffman e Romão
Hoffmann (2015, p. 1) propõe compreender o termo avaliar a partir de um olhar mais amplo. Para a autora, o ato de avaliar compreende:
- um grande conjunto de procedimentos didáticos;
- de caráter multidimensional e subjetivo;
- que se estendem por um tempo longo e ocorrem em variados espaços; e
- que envolvem todos os sujeitos do ato educativo de maneira interativa.
Nessa perspectiva, instrumentos e registros integram o processo metodológico que está sujeito a alterações conforme a concepção de avaliação a que está atrelado, que pode ser classificatória ou mediadora.
Hoffmann (2014) nos propõe ainda uma reflexão sobre a avaliação no contexto de uma sociedade calcada nos princípios liberais, capitalistas; e aponta alguns elementos constitutivos em oposição a esses princípios, ancorados em uma perspectiva de avaliação libertadora, mediadora, conforme demonstrado no quadro abaixo:
Quadro 1: Perspectiva de avaliação liberal, libertadora e mediadora.
Fonte: Hoffmann (2015, p. 142)
A autora ainda nos chama a atenção para a necessidade de um enfoque crítico da educação por parte dos professores acerca do significado da avaliação. É necessário que o educador esteja ciente do seu papel docente na sociedade.
Nesse contexto, precisamos avançar de uma avaliação referenciada em uma pedagogia positivista para uma avaliação numa perspectiva dialética, conforme fundamenta Romão (1998, p. 58):
Quadro 2: pedagogia positivista e perspectiva dialética
Fonte: Romão (1998).
Repensar o processo avaliativo escolar sob essas perspectivas pode determinar a necessidade de mudança da forma com que ele vem sendo desenvolvido. No entanto, esse repensar deve se estruturar, sobretudo, numa profunda reflexão da instituição escolar acerca do seu papel social na sociedade atual.
Esse processo reflexivo deve permear, constantemente, a organização do trabalho pedagógico, e implica em um processo de formação continuada dos docentes, com vistas à ampliação dos conhecimentos sobre os documentos que norteiam a educação, fundamentalmente, a BNCC (BRASIL, 2018), conforme veremos a seguir.
